Movimento luta pelo fim da escala 6x1, responsável pelo desgaste físico e mental dos trabalhadores no país

Hoje, milhares de brasileiros têm apenas um dia de folga na semana. São oito horas diárias de trabalho, mais o tempo perdido nos transportes públicos. No fim do turno não há tempo para mais nada, além de descansar para o próximo dia de serviço. Essa jornada impacta principalmente os trabalhadores dos setores do comércio e de serviços, como hoteis, bares e restaurantes.
Pela necessidade da renda, muitos não têm escolha a não ser se submeter a esse tipo de emprego, em que não é possível estudar, ter um momento de lazer ou até mesmo cuidar da saúde física e mental. Essa realidade é demonstrada na pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva, que aponta: 65% dos brasileiros não conseguem ter nenhum momento de recreação durante a semana.
Em comparação com outros países do G20, por exemplo, o Brasil possui uma das maiores jornadas de trabalho. Além disso, um relatório feito pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) demonstra que 6% dos brasileiros trabalham mais de 50 horas semanais e que, no país, apenas 14,6 horas semanais são dedicadas aos cuidados pessoais e lazer. Diante desse panorama, milhares de pessoas passaram a se incomodar e buscam uma mudança na legislação trabalhista atual.

Movimento VAT
Em setembro de 2023, o influenciador digital Rick Azevedo publicou um vídeo em crítica à escala 6x1. “Gente, eu quero saber quando é que nós, da classe trabalhadora, iremos fazer uma revolução nesse país. Não existe essa escala 6x1, é uma escravidão moderna. Moderna não, ultrapassada.” A revolta de Rick viralizou no TikTok e atingiu mais de 1,6 milhão de visualizações. Naquela altura, ele trabalhava como balconista de uma farmácia no Rio de Janeiro, onde mora há 10 anos, e atuava sob o regime de seis dias de trabalho com apenas uma folga na semana.
Com a viralização do vídeo e a grande adesão de trabalhadores por todas as partes do país, Rick lançou uma petição online e criou o movimento Vida Além do Trabalho, com a formação de grupos no WhatsApp para debater as mudanças no Conjunto de Leis Trabalhistas (CLT) quanto a carga horária e a demanda pelo fim da escala 6x1. Hoje, pouco mais de um ano depois, a petição tem 2,9 milhões de assinaturas e o VAT tem mais de 330 mil seguidores no Instagram. Rick, que antes tratava sobre assuntos diversos do mundo pop em suas redes sociais, passou a militar pelo fim da jornada que considera exploratória.
Em 2024, o tocantinense de 30 anos se candidatou ao cargo de vereador no município do Rio de Janeiro e foi eleito, inclusive sendo o mais votado do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na capital fluminense, com 29,3 mil votos. Durante a campanha eleitoral, Rick permaneceu na luta pela redução da jornada de trabalho com o movimento VAT por meio das redes sociais e com articulação nas ruas. “Todos nossos direitos foram conquistados com muita luta, nenhum direito vem porque um político é bonzinho. A internet é uma ferramenta poderosa, mas não é suficiente, a gente precisa continuar indo às ruas reivindicando pelo fim da escala 6x1”, afirma em vídeo publicado em seu Instagram.

Além de Rick Azevedo, o movimento é coordenado por outros trabalhadores incomodados com uma jornada exaustiva, como Priscila Santos, 30 anos, que conviveu com rotinas de trabalho 6x1, em restaurante fast-food, farmácia e como atendente de telemarketing. “Sempre achei bizarro a forma como os trabalhadores são tratados. É resquicio da escravidão”, opina Priscila sobre a jornada com que sofre até hoje.
Depois de assistir ao famoso vídeo de Rick, Priscila percebeu que não era a única insatisfeita com esse regime. “Foi ali que vi a necessidade de tomar atitude e fazer acontecer o fim da escala 6x1”, diz a coordenadora do Vida Além do Trabalho “O maior desafio é você ser humano, porque você é robotizado e tratado como uma máquina pelas empresas.”
Priscila acredita que os trabalhadores precisam exigir respeito e estar dispostos a garantir seus direitos, em prol de uma vida mais digna. Ela considera que a redução da jornada de trabalho é essencial para isso. “Não somos nós que temos que ter medo, são eles (empresários e políticos contrários ao fim da escala 6x1), porque quem faz a economia girar somos nós.”

Josi Miranda: sem tempo para estudo

Desde os 13 anos de idade, Josi Miranda é afetada pela jornada 6x1, quando tinha um dia de folga na semana e apenas um domingo de descanso por mês. Filha de mãe solteira, ela não podia sair do emprego por depender daquela renda. Aos 15 anos, devido ao cansaço causado pela rotina de trabalho, Josi decidiu abandonar os estudos ainda no primeiro ano do ensino médio. ”Eu não tinha vida, quando chegava em casa depois de uma hora, ou mais, no metrô, só queria descansar.”
Além da jornada maçante ao longo de seis dias da semana, Josi passava duas horas por dia em transporte público, já que morava na Pavuna, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, e trabalhava no Largo do Machado, na Zona Sul da cidade. “Cheguei a desmaiar uma vez quando passei três horas dentro do Metrô, que estava com problema.” Em outra experiência profissional, em que trabalhava durante a madrugada, enfrentou a falta de transportes públicos na volta para casa, por conta da distância e do horário. “Era muito difícil.”
Aos 29 anos, com os estudos retomados e uma carga de trabalho menos cansativa, Josi lamenta: “Se não fosse por essa escala 6x1 eu acredito que teria outro caminho. Se não tivesse tido essa vida de trabalhar para sobreviver, com certeza teria construído uma estrutura de vida melhor”.
Josi também atribui à escala 6x1 um impacto em sua vida amorosa. “Não conseguia encontrar com meu antigo namorado, não tinha como conciliar o trabalho e a vida.” Por isso, Josi fez questão de estar presente na manifestação pelo fim da jornada 6x1. “Essa escala é uma exploração. Eu vivi ela e eu consigo entender essa revolução que o VAT [Movimento Vida Além do Trabalho] está fazendo é uma esperança para as pessoas realmente viverem e não apenas sobreviverem.”
Sílvio Pinheiro: sem tempo para família

Silvio Pinheiro, 56 anos, é metalúrgico e por 11 anos ao longo de sua carreira precisou trabalhar na escala 6x1. Por conta disso, Silvio afirma ter perdido momentos preciosos em família. “Eu tive menos tempo para cuidar de mim e para acompanhar o crescimento de meus filhos, já que o período que trabalhei foi durante a infância deles e hoje eles são adultos. Sempre tentei acompanhar o lazer e a vida em família, mas devido ao trabalho não conseguia”, afirma.
Silvio faz parte da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras Brasileiros e acredita na luta social por uma realidade mais justa, principalmente quanto aos direitos trabalhistas: “Não é a questão de não querer trabalhar, é um desejo dos trabalhadores de viverem cada vez mais, terem tempo para estudar, tempo para família e para participar da vida da sua comunidade como todo mundo e não serem escravos do trabalho”.
O metalúrgico afirma que o fim da escala 6x1 seria ótimo para a sociedade brasileira: “A redução da jornada de trabalho gera inclusive mais empregos. Assim, vai ter uma qualidade melhor de vida e uma quantidade maior de trabalhadores empregados. É importante pensar no coletivo, quero melhorar minha condição de vida, mas não só a minha e sim de todos trabalhadores”, defende o sindicalista.
Alexandre de Andrade: saúde mental abalada

Alexandre de Andrade, 42 anos, trabalhou como estoquista em um supermercado na mesma escala que Silvio, Josi e outros milhares de brasileiros. O expediente iniciava às 2h da tarde e durava até às dez horas da noite. “Não tem lazer nenhum esse horário, só conseguia resolver coisas pessoais na parte da manhã e mais nada. Você se sente diminuído, estafado”, comenta Alexandre.
Devido a seu cargo, que exigia esforço físico constante por repetidas horas, Alexandre sentiu impacto na saúde. “Sentia dores nas costas e nas articulações”, comenta. Além das dores, Andrade foi afetado por um grande desgaste mental: “No começo você acha aquilo normal, acha que consegue dar conta, mas ao longo do tempo você vai cansando mentalmente, acaba com sua saúde emocional”, resume o agora técnico de enfermagem.
Incomodado com essa escala há muito tempo, Alexandre se sentiu representado pelo Movimento Vida Além do Trabalho. “Esse movimento vai no âmago do trabalhador, eu sempre sonhei com o trabalhador ter mais direito a lazer, ter mais saúde, condições de pensar em progredir e estudar”, e complementa: “As pessoas se sentem frustradas, com problemas, mas não entendem que é por conta dessa jornada de trabalho exploratória”.
Fim da escala 6x1
Com a crescente do movimento e o grande apoio popular, a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição para reduzir a jornada de trabalho semanal. Atualmente, a Carta Magna prevê que não se pode ultrapassar as 44 horas semanais, já a proposta de Hilton busca uma redução para 36 horas semanais. A deputada qualifica a jornada vigente como desumana, “a escala 6x1 é uma prisão e é incompatível com a dignidade do trabalhador”, declarou em publicação nas redes sociais.

A deputada propõe a revisão do artigo 7° da Constituição Federal. A redução da carga horária alteraria de seis para quatro dias de trabalho na semana. O texto da parlamentar do PSOL também prevê que a mudança na jornada de trabalho deve ser feita sem redução no salário dos trabalhadores.
No último dia 15 de novembro, a pauta foi responsável por mobilizar milhares de manifestantes ao redor do país. Foram realizados atos em mais de 14 capitais brasileiras, 17 cidades no interior dos estados brasileiros e no Distrito Federal, todos organizados nas redes sociais pelo Movimento Vida Além do Trabalho.
O VAT transformou a pauta da redução de jornada de trabalho em um dos assuntos mais comentados do X, o antigo Twitter, na semana anterior aos protestos, ocupando os trending topics do Brasil. Além do X, adeptos do movimento pressionaram parlamentares da Câmara dos Deputados por meio do Instagram, para assinarem a PEC proposta por Erika Hilton.
O texto precisava de 171 assinaturas para ser tramitado na Casa Legislativa e, por conta das cobranças dos internautas, 231 deputados assinaram. No entanto, mesmo com o apoio necessário para apresentar a proposta oficialmente, a autora Erika Hilton afirmou em coletiva de imprensa que haverá mais negociações com deputados que desejem assinar a PEC.
Após a apresentação, o texto será encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e na sequência passará por comissões especiais, que podem até mesmo realizar alterações no texto original. Por fim, a proposta será levada ao plenário da Câmara e precisa de 308 votos favoráveis, em dois turnos de votação, para ser aprovada. Assim, a PEC seguirá para o Senado, onde passará por um processo similar.
Negros trabalham mais e recebem menos
Historicamente, trabalhadores negros recebem muito menos do que os brancos no Brasil. Segundo a pesquisa Custo Salarial da Desigualdade Racial, do Núcleo dos Estudos Raciais do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), o salário médio dos negros é 42% menor em relação aos brancos. O levantamento também demonstra que os pretos e pardos, equivalente a 55,2% dos trabalhadores do país, deixam de ganhar R$103 bilhões ao mês, por não receberem de forma igualitária e não terem o mesmo nível de empregabilidade dos brancos.
No entanto, mesmo com salários inferiores, os negros, em média, trabalham mais horas por semana do que os brancos. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios Continua (PNADC) demonstram que os negros correspondem a mais da metade dos trabalhadores nos setores com as maiores jornadas de trabalho, como agropecuária, extrativismo, alimentação, transporte, comércio e construção civil.
A perspectiva para o futuro não é animadora. Em pesquisa realizada pelo IBGE em 2023, os dados demonstraram que a população negra era duas vezes mais pobre que a branca. Além disso, dentre os jovens que não estudavam ou estavam fora do mercado de trabalho, a maior parcela era de negros, sendo 43% mulheres negras e 24% homens negros, enquanto 20% eram mulheres brancas e 11% homens brancos.
Todas histórias contadas nesta reportagem são de trabalhadores negros, que em algum momento de suas vidas tiveram sonhos perdidos, noites mal dormidas e momentos de lazer trocados por enriquecimento alheio. Isso evidencia que a luta pela redução na jornada de trabalho e a busca por uma vida mais digna é uma pauta do povo negro deste país.
Experiência no Brasil e no mundo
As horas de trabalho semanais em cada país vão de acordo com a legislação local. No entanto, em 1935, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estipulou que a jornada de trabalho não deveria ser superior a oito horas diárias e 40 horas semanais. Essa recomendação é baseada em estudos que buscam prevenir a saúde dos trabalhadores no mundo, mas não é uma norma obrigatória.
Com base nessas recomendações, muitos países passaram a adotar jornadas de trabalho reduzidas. Além das mudanças nas legislações, há um movimento coordenado pela 4 Day Week Global para realizar experimentos em que a semana de trabalho dure apenas quatro dias.
O modelo foi testado em diversos países, como Canadá, Holanda, Chile, Estados Unidos e Reino Unido, onde demonstrou resultados positivos: 91% das empresas decidiram continuar com a semana de quatro dias de trabalho. Além disso, 71% dos trabalhadores britânicos que participaram do teste tiveram redução nos sintomas de burnout e 54% conseguiram conciliar melhor a rotina pessoal e profissional. O experimento também teve impactos nas finanças das empresas participantes, com aumento das receitas em 35% na média.
O Brasil também realizou o experimento proposto pela 4 Day Week Global, com um total de 21 empresas participantes. Ao fim do projeto piloto, foram detectados resultados positivos: mais de 80% dos trabalhadores sentiram mais energia, criatividade e inovação nas tarefas. Durante a experiência, cerca de 50% dos trabalhadores tiveram melhoria nas horas dormidas e 72,8% sentiu a redução na exaustão frequente. 74,1% dos empregados sentiram mais dispostos a realizar atividades com familiares e amigos, além de 44,4% que conseguiram conciliar melhor a vida pessoal e profissional.
Após o fim da experiência, o horário trabalhado por semana entre as empresas participantes diminuiu de 42,8 para 36,5 e todas decidiram continuar com a redução das horas de trabalho, mesmo que em regimes diferentes à proposta. Assim como no caso britânico, as empresas também notaram um aumento nas receitas e no lucro durante o experimento em comparação ao mesmo período do ano anterior.
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