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Nome aos bois

Foto do escritor: Paulo Roberto PiresPaulo Roberto Pires

Por Paulo Roberto Pires

Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ


Coluna de Paulo Roberto Pires para a Revista Palácio
AP Photo/Jae C. Hong

Em 6 de novembro de 2024, a Vanity Fair dedicou a capa de sua edição digital a um close de Donald Trump protocolarmente enfezado, encarando a câmera. No lugar do título, a revista mais conhecida por amenidades do que contundência fez constar uma contabilidade: 


  • 34 indiciamentos por crime grave

  • 1 condenação

  • 2 ações penais abertas

  • 2 impeachments

  • 6 falências

  • 4 anos mais

  • O 47º presidente americano


Capa sobre Donald Trump na Vanity Fair
Capa sobre Donald Trump na Vanity Fair

É uma aula de jornalismo. Prescinde de verbos e adjetivos. Números e substantivos dão conta de um recado inequívoco: a maioria dos eleitores que foram às urnas nos Estados Unidos escolheram ser governados, pelo segundo mandato, por um cidadão com sérios problemas  – pelo menos na justiça. 


A capa é também importante por reiterar a tradição de os veículos norte-americanos assumirem explicitamente o apoio a candidatos à presidência. Esta mesma eleição, não esqueçamos, ficará para sempre marcada pelo fato de a redação do Washington Post ter sido impedida de manifestar seu endosso a Kamala Harris por decisão direta de Jeff Beezos, proprietário da Amazon e, desde 2013, do jornal. 


O que isso tudo tem a ver com o Brasil? Não percamos tempo em esperar que, algum dia, grandes conglomerados de mídia se manifestem politicamente de forma explícita. Tudo indica que a neutralidade, esse unicórnio do jornalismo, continuará a ser, entre nós, a parcialidade distribuída por escolhas de títulos, pelas hierarquias das notícias e os elencos de articulistas. Em casos extremos, um editorial indignado tenta reparar os danos.


Mais factível é uma operação que dispensa as altas articulações e remete aos rudimentos do jornalismo: dar nome aos bois. Trump hoje, como outros notórios líderes autocratas ainda ontem, são tratados por parte importante da imprensa brasileira com uma impressionante variedade de eufemismos.


Pouco antes das eleições dos EUA, num perfil que pretendia apresentar Trump ao leitor brasileiro, o candidato republicano foi definido por um jornal brasileiro como “um político não convencional”. Numa manchete publicada no dia do pleito, o homem que ameaça se vingar de seus críticos é tratado como “líder controverso”. Num artigo de opinião, as variadas conjecturas, feitas no Brasil e em todo o mundo, sobre as relações entre o candidato e o fascismo, o marido de Melania é tido como um “desafio existencial à democracia”.


Apresentação de Trump feita pela Folha de São Paulo (Foto: Reprodução)
Trecho do perfil de Trump feito pela Folha de São Paulo (Foto: Reprodução)

Qual seria a motivação para tamanha docilidade, que repete como farsa uma história que já vimos de perto, na cobertura das duas últimas eleições presidenciais brasileiras? Uma resposta razoável vem de Timothy Syder, historiador que dá aulas em Yale e é autor de livros como Na contramão da liberdade – A guinada autoritária nas democracias contemporâneas e Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente.   


“A presença de Trump sempre foi uma co-criação: dele e nossa”, escreve Snyder em “O que significa dizer que Donald Trump é um fascista?”, ensaio publicado na New Yorker em 8 de novembro. “Desde o momento em que, em 2015, desceu pela primeira vez as escadas rolantes da Trump Tower, ele foi tratado como uma fonte de espetáculo. Como ele era bom para a televisão, foi aceito como um candidato legítimo. Na mídia impressa, ele cresceu através da doutrina do ‘doisladismo’: não importa o quão terríveis fossem suas ações, seu oponente tinha que ser apresentado como igualmente ruim. Isso o fortaleceu para que fosse ao mesmo tempo perverso e normal”.

 

Qualquer semelhança com outros personagens e contextos não é, mesmo, mera coincidência.


Bolsonaro e Lula nos EUA
(Foto: Reprodução)

 
 
 

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