Da rua sem placa ao prédio demolido, memórias recontam o Massacre da Praia Vermelha
- Eduardo Cassar
- 2 de dez. de 2024
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Em 1966, cerca de 600 estudantes foram encurralados por militares no prédio da Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ. Dez anos depois, ainda durante a Ditadura, o campus foi destruído
Por Eduardo Cassar

A rua que dava acesso à Faculdade Nacional de Medicina (FNM) da UFRJ, na Urca, já era cenário marcado pelo movimento estudantil e pelos militares. Era curta, estreita, sem saída e sem nome. Desde o início da Ditadura Militar, os estudantes constantemente eram encurralados no local por agentes do Exército. Naquela tarde do dia 22 de setembro de 1966 não foi diferente. A União Nacional dos Estudantes (UNE), que atuava clandestinamente, escolheu a data para articular uma mobilização em todo país contra a violência do regime e a cobrança de anuidades. Anos mais tarde, o enfrentamento dos estudantes e o confronto entre militares e alunos no episódio conhecido como Massacre da Praia Vermelha levaria a demolição da faculdade e o sumiço da rua que dava acesso ao campus.
Foi nessa rua sem nome que o então reitor Pedro Calmon tentou impedir a entrada dos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Só tem uma maneira de entrar na faculdade, que é fazendo o vestibular”, disse. Lá dentro, a UNE se mantinha em assembleia permanente no pátio central. A ocupação varreu a madrugada. Um mês depois, a rua anônima ganhou um CEP escolhido pelos próprios estudantes, e não pela Câmara. Aquela seria a rua Autonomia Universitária. Ainda na semana de seu batismo, a placa colocada pelos próprios estudantes na esquina da rua não seria mais vista. Por medo de represálias, o movimento decidiu retirá-la.

Apesar do conflito não ter resultado em nenhuma vítima fatal, foi um verdadeiro massacre para a luta da UNE. Entre os anos de 66 e 68, a maré de lutas contra o regime se acalmou. Manifestações, conflitos e a rua recém-nomeada não seriam mais vistos por anos. O jejum só seria interrompido com os levantes que culminaram no o episódio conhecido como Sexta-Feira Sangrenta, com um cerco do Palácio Universitário da UFRJ no dia anterior e manifestações na Cinelândia no dia seguinte. Desse segundo cerco, apenas a Faculdade de Química, que na época ficava também na Urca, passou intacta. “Os militares tinham medo que a gente jogasse ácido sulfúrico neles. Nós éramos preparados, tínhamos ácido, lutávamos Karatê”, conta José Roberto Brom, estudante do curso na época.
As lutas por melhorias no bandejão Calabouço, próximo ao aeroporto Santos Dumont, foram o estopim para a retomada massiva das manifestações, depois da morte do estudante Edson Luiz. Segundo as autoridades, os frequentadores do local eram “terroristas profissionais, agitadores e de transformar o local em um centro de atividades subversivas”. O paraense de 18 anos foi atingido com um tiro no coração durante a luta a favor do refeitório popular. Seu assassinato e o cerco no Palácio, que coagiu e prendeu os filhos da elite carioca, culminou na conhecida Passeata dos 100 mil, em junho de 68.
“Depois do ano agitado e pontilhado de manifestações, como foi o de 1966, o início de 1967 apresentou-se calmo. Este fato, entretanto, pode ser explicado, pois os primeiros meses do ano são destinados às férias”, interpreta um relatório confidencial na época, do então Ministério da Aeronáutica, em documento disponível no Arquivo Nacional. Para o cerne da luta estudantil, as motivações eram diferentes. “A pancadaria foi tão grande que houve um certo refluxo. Eu conheço pessoas que demoraram a se recuperar depois do evento. Foi um tempo para se recuperar da tortura, da violência e da pancadaria”, conta Caíque Tibiriçá, hoje com 73 anos e estudante secundarista do Pedro II na época do Massacre. “De 64 em diante a gente ficou na clandestinidade, nossas representações foram cassadas. Foi um período em que a gente foi cassado com dois S e caçado com cedilha.”

Entre hinos e cadáveres
O Dia Nacional da luta contra a Ditadura Militar, pontapé inicial para a invasão da FNM, ficou marcado por uma série de protestos em diversos estados. No estado da Guanabara, atual cidade do Rio de Janeiro, o movimento se concentrou no Teatro de Arena do Palácio Universitário. De lá, 600 alunos partiram em caminhada até o campus vizinho dos cursos de Medicina e Odontologia, quase no final da Avenida Pasteur. Durante todo o trajeto, os manifestantes foram acompanhados por um grupo de agentes da repressão, que eram maiores em força e em número. O grupo ocupou o local durante todo o dia 22, mas foi na madrugada do dia 23 que os militares do DOPS invadiram o prédio, depois de horas de cerco e negociação. O saldo da invasão foi de salas destruídas, lanchonetes com caixas arrombados, jovens assediadas pelos agentes e diversas lideranças estudantis na prisão. O campus precisou ser fechado para reparos por quase um ano.
“Eles entraram e a gente foi correndo alucinado para o terceiro andar, que era o andar do prédio onde era a sala de anatomia”, conta José Noronha (76), estudante de Medicina na época e que estava na invasão. O cheiro de formol e a presença cadavérica dos corpos foi o ambiente em que alunos e militares se encontraram, no topo do prédio. Mais uma vez encurralados. “Naquela época, quando a gente cantava o hino nacional a polícia parava. Então a gente começou a cantar, no meio dos cadáveres. Foi uma cena grotesca. Era um resquício do começo da ditadura, eles tinham que prestar homenagem ao símbolo pátrio.”

Dado o fim das homenagens, o grupo se dispersou. Um corredor polonês já estava montado nas escadarias, e o caminho até o térreo, dessa vez, foi acompanhado de cassetetes, empurrões e espancamentos. Noronha lembra da investida dos militares depois que a cantoria terminou. “Eu me lembro que a gente desceu e eu sai correndo sabe lá Deus para onde pela Avenida Pasteur, enquanto alguns colegas eram presos no prédio”. Nessa mesma avenida, para quem não correu tão rápido como Noronha, os agentes da repressão já estavam preparados para as prisões. “Quando os alunos desceram, ali na entrada do prédio havia uma seleção de quem era liderança e deveria ser detido. O resto eles iam dando uma ‘borrachada’ ou outra e iam soltando.”
O hiato entre os anos de 66 e 68 que, posteriormente, reacendeu as movimentações com o cerco do Palácio, a morte de Edson Luiz e a Passeata dos 100 mil culminaram em uma escalada de repressão e censura. Foi em dezembro de 68 que o Ato Institucional Nº5 (AI-5), medida mais rígida da Ditadura, foi editada. Caíque rememora o clima na universidade e nas escolas públicas depois do quinto Ato: “Antes do AI-5 era uma resistência com cautela, depois do AI-5 foi uma resistência com cautela e clandestinidade total. Quem entrou para a guerrilha urbana sumiu do movimento estudantil”.
O terreno

Dez anos depois também sumiu qualquer resquício do edifício invadido pelos homens da Ditadura e da rua Autonomia Universitária sem placa, mas ainda com um nome. Trinta anos separam o momento em que o terreno veria seu espaço ser utilizado novamente por uma instituição pública de ensino. Hoje o prédio de Medicina deu lugar ao campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) . Os quatro pavimentos, arquitetura eclética e aproximadamente 11 mil metros quadrados da FNM eram tão grandes que ocupavam uma dimensão, hoje em dia, equivalente à quatro edifícios da Unirio.
Em comparação com a antiga Universidade do Brasil, fundada na década de 20, a Unirio tem um histórico mais recente. Criada durante a Ditadura, ela se estabeleceu enquanto instituição de ensino superior durante esse período. “Acabou se concentrando nos espaços que a UFRJ esvaziou quando os cursos foram para o Fundão”, conta Vitor Halfen, arquiteto e técnico-administrativo da Unirio, atuante na coordenação de Engenharia. Ele integra o Grupo de Estudos em Patrimônio e Memória Universitária (GEPAM), que pesquisa sobre a história e a memória das duas instituições, que são cruzadas pelo Massacre e, posteriormente, pela demolição do prédio de Medicina. “Além da FNM, herdamos a Faculdade de Odontologia, que hoje é a biblioteca central e a Escola Nacional de Química, hoje é o Centro de Letras e Artes.”

Entre os anos de 1968 e 1970, mesmo período em que a UNE retornava de um hiato de dois anos após o Massacre, a UFRJ ficou marcada por uma extensa reforma universitária. Nos moldes de Brasília e no projeto desenvolvimentista do Regime Militar, os planos de construir uma ilha artificial começaram a ser tirados do papel. Quando o Fundão é citado por membros do movimento estudantil, sempre é citado como um projeto pensado para desarticular a luta social. Ruas extensas, prédios distantes um dos outros e deslocamento voltado para os automóveis são alguns dos exemplos que poderiam demonstrar esse projeto. Vitor, entretanto, relembra que a ideia de instalar os cursos todos no Fundão é anterior à ditadura, é dos anos 1940. “É um projeto que, para os militares, serviu no lugar certo e na hora certa.”
O caráter desenvolvimentista salta aos olhos ao observar o histórico de opções para o projeto centralizador dos cursos. Antes do Fundão, cogitou-se que a Praia Vermelha, local já consolidado como polo universitário, poderia ser adaptada para receber os demais institutos espalhados pela cidade. Depois, a Quinta da Boa Vista foi outro lugar levantado para alocar os alunos. Optou-se em 1944, entretanto, pelo projeto “mais megalomaníaco de todos”, segundo Vitor: criar uma ilha do zero na Baía da Guanabara. Foi durante esse processo que a FNM foi esvaziada para ser transferida para a Cidade Universitária.
Vender, demolir e apagar

Marcado como um dos primeiros campus da Universidade do Brasil, a história do prédio de Medicina é anterior ao Palácio Universitário. Enquanto o endereço vizinho do antigo Hospício Dom Pedro II só veio a ser ocupado na década de 1940, a FNM foi projetada e pensada para receber alunos e professores, no início do século XX. Apesar de ser um campus com fatos notáveis e históricos para a trajetória da UFRJ e do Ensino Superior no Brasil, não existem documentos que detalhem as negociações que envolveram a demolição. “Por exemplo, a Andreia Queiroz, historiadora e chefe da divisão de memória da UFRJ, que conhece essa história de cabo a rabo e nunca achou. Ela tem acesso aos arquivos que precisar, porque faz parte da Comissão da Memória, mas ela nunca achou”, revela Vitor.
A proximidade dos terrenos universitários localizados na Urca com os terrenos de propriedade dos militares pautou não só o clima das manifestações estudantis na década de 60, mas a venda do terreno e demolição do campus nos anos seguintes. Foi ali, na Praia Vermelha, que repressão e oposição dividiam o muro. Bem ao lado da FNM fica a Escola de Guerra Naval. “Na mesma posição onde tinha a quadra esportiva da Faculdade de Medicina hoje é a quadra da Marinha”, relembra o arquiteto da Unirio. “E o Bandejão também foi demolido e hoje faz parte da Escola da Marinha. Essa vizinhança é um ponto de efervescência do movimento estudantil por um convívio muito direto entre militares e estudantes”.
Apesar do prédio de Medicina ter sido entregue no ano de 1973, até 1975 se encontram registros de alunos indo até a Praia Vermelha para cursar disciplinas específicas. O contexto do início da década de 70 era de finalização do Hospital Universitário. A justificativa para a venda do campus, segundo Vitor, era “para financiar o final das obras. Surge uma negociação de compra do terreno pela Eletrobrás”. A ideia da empresa estatal era construir um arranha-céu nos moldes do que fez a Petrobrás e o BNDES, no centro do Rio. A demolição, por isso, serviria para facilitar a negociação entre UFRJ e a empresa, já que o prédio original não seria utilizado na nova sede.
Só a demolição foi para frente. A Urca não chegou a ver um sinal do arranha-céu que, hoje, seria irmão do maior prédio da cidade, o Edifício Rio Sul. Era impossível construir um edifício com tantos pavimentos em um terreno tão próximo de áreas do exército. “É uma questão de segurança e se presume que os militares já sabiam que a Eletrobras não ia poder construir a sede dela”, revela Vitor. “Então a história é muito mal contada, é muito sem pé nem cabeça porque desde o início é óbvio que não vai dar para construir ali o prédio. Então o que fica dessa história parece só uma desculpa mal dada para demolir a FNM.”
Aquele não seria o primeiro episódio de apagamento por parte dos militares. No início da Ditadura, o prédio da União Nacional dos Estudantes na Praia do Flamengo foi incendiado. Como manda o figurino das abordagens, nos moldes que o campus de Medicina recebeu, os agentes invadiram o local e incendiaram a sede da UNE. “Destruíram a FNM à toa”, reafirma Caíque Tibiriçá. “Assim como destruíram a UNE à toa porque eram dois símbolos: a sede do movimento, que era simbólica em si, e a outra porque era símbolo da pancadaria e do massacre”.

A Unirio entre escombros e memórias
Apesar da dificuldade de encontrar fontes oficiais que detalhem essas negociações e seus bastidores, o que ficou para trás são os relatos da autobiografia de Guilherme Figueiredo, intitulada A Bala Perdida: memórias. O sobrenome, em tempos de Ditadura, já revela facilmente o parentesco do primeiro reitor da Unirio. Guilherme era irmão do general João Baptista de Oliveira Figueiredo, o último presidente do Regime Civil-Militar. Foi em 1979 que o reitor da Universidade tentou, pela primeira vez, adquirir o terreno para o patrimônio da instituição. Depois que o projeto faraônico da Eletrobrás foi impedido, o local ficou vazio por aproximadamente dez anos.
Só em 1986, 20 anos após o massacre e dez após a demolição, Guilherme Figueiredo concluiu a transação. “A visão do Guilherme Figueiredo era instalar naquele terreno o campus principal da Unirio e fazer ali também um grande centro cultural”, conclui Vitor Halfen. Levaria mais uma década até aquele terreno ver um novo prédio ser construído: a atual sede da Escola de Turismo.
Para além das décadas até que a Unirio se estabelecesse em seu campus central, quem também demorou a reaparecer foram os sinais deixados pelo antigo prédio da FNM. Já no século XXI, sob as influências do segundo governo Lula e as iniciativas do Reuni, novas obras foram feitas no terreno centenário. A nova sede do Centro de Ciências Humanas (CCH) teve suas primeiras modificações em 2017. O arquiteto da Universidade conta que “todos esses prédios da Unirio, principalmente o CCH, são construídos em cima das fundações da Faculdade de Medicina. São antigas e profundas, com blocos gigantescos de pedra e vigas profundas que a gente retirou”.
Os 100 anos de história demolidos e enterrados foram encontrados pela equipe. Além dos blocos de pedra que vieram da renovação das fundações, os esforços para uma nova subestação de encanamento para o prédio de 2017 revelou parte do piso que fazia parte do campus de Medicina. “Ainda falta confirmar com alguns alunos, não sabemos se era assim mesmo”, detalha Vitor enquanto remonta o padrão de desenho em cima de uma mesa. Mas em entrevista, já com a foto dos ladrilhos encontrados, José Noronha revela: “Era assim mesmo, eu e meus colegas podemos confirmar”.

Hoje, são os pesquisadores e funcionários da UFRJ e da Unirio que tentam remontar as peças deixadas pela história. A memória do Massacre da Praia Vermelha pode ser desenterrada a qualquer momento. A única memória do evento que se encontra na Urca é uma pedra de fundação, que sinaliza a pré-existência da Faculdade de Medicina. Não há nenhuma menção à invasão ou aos presos políticos. O projeto de extensão Espaços Livres Unirio, do qual Vitor também faz parte, vem trabalhando em um projeto de requalificação urbana para o campus da Praia Vermelha e seu entorno. “A gente tem um projeto de transformação desse Campo num museu de território, um museu a céu aberto. Vamos povoar o espaço do campus com as memórias que recontam a nossa história, a história do massacre e a história da Ditadura Militar. Nosso horizonte é essa questão da valorização da memória”, contou o arquiteto.
A proposta já foi aceita pelo Conselho Universitário que, na mesma direção, também aprovou a criação da Comissão da Verdade da Unirio, para avaliar a história da instituição durante a Ditadura. Foi uma das últimas universidades a inaugurar iniciativas como essa. A UFRJ, por exemplo, iniciou seus estudos oficiais sobre a memória do regime militar e da repressão em 2014, nas esteiras do que foi feito durante o Governo Dilma. Para Vitor, a Unirio está mais “umbilicalmente ligada à ditadura militar, porque nasce da proposta de um professor da Escola de Medicina que era um general ligado diretamente ao Costa Silva”.
Em seu penúltimo Plano Diretor, a UFRJ rememora a transferência de todos os institutos para o Fundão e cita o “princípio e objetivo central da integração entre campus com a transferência para instalações na Cidade Universitária”. Enquanto isso, estudantes e pesquisadores se empenham em um trabalho minucioso: a tentativa de valorizar as histórias do Regime Militar, tão fixas como as fundações ainda encontradas no terreno. A rua Autonomia Universitária, extinta junto com a FNM, poderá ser vista futuramente, caso as iniciativas de resgate e valorização da memória se concretizem. Já tramita na Câmara dos Vereadores o projeto de lei 3019/2024. Sob autoria da vereadora Luciana Boiteux (PSOL), a proposta quer renomear a Praça Guilherme de Oliveira Figueiredo, localizada na entrada da Unirio, para Praça Autonomia Universitária. Mas, dessa vez, a placa que nomeia a Praça Autonomia Universitária não deve ser retirada nem tão cedo, agora que o medo dos vizinhos militares da Praia Vermelha também foi demolido.

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