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Obituário de um banheiro

Foto do escritor: Gabriela WolynecGabriela Wolynec

Atualizado: 23 de mar.

Um aperto de bexiga e coração


A vida do antigo sanitário da Glória foi bem resumida por um comentário em redes sociais.

“Um horror.” Um lar. Fez de tudo um pouco. Foi até personagem de cinema. Esteve presente nas vidas dos motoristas, cobradores de bondes, taxistas e do público em geral.  A vida do antigo sanitário da Glória foi bem resumida por um comentário em redes sociais. Luiz Alberto Carvalho, que conheceu o sujeito em plena atividade, escreveu: “Era usado para muitas coisas… Inclusive, para banheiro”.


Como muitos brasileiros, esta peculiar peça do mobiliário público carioca não tem certidão de nascimento nem atestado de óbito. Por muito tempo, o único sinal de sua existência terrena foi seu túmulo sem nome. Os moradores mais novos e os frequentadores da famosa Feira da Glória já não reconhecem o tímido relevo que interrompe o padrão das pedras da amurada na Rua Augusto Severo. Entre escadarias e luminárias no estilo Art Decó, com o - também inativo - Chafariz da Glória ao fundo, o recuo de alguns centímetros pode passar despercebido. Mas não para Bruno Vieira. Aquele “T” em ladrilhos claros despertou sua curiosidade.


O securitário de 38 anos, que mora no bairro desde 2010, passou pela estrutura incontáveis vezes antes de decidir fazer uma pesquisa. Descobriu uma notícia do jornal O Globo, de 1990, que dava o veredito - tratava-se de um banheiro público. E mais, a matéria dava uma dica da causa mortem. O espaço estava sendo usado como moradia por uma família de sete pessoas.


Bruno compartilhou o achado na sua página Informe Gloriano no Instagram e no Facebook. Por lá, o tema rendeu nos comentários. Quem diria que um simples toalete seria capaz de suscitar fortes opiniões? Assim como uma discussão de um casal nunca é, no fundo, sobre a toalha em cima da cama, essa peculiaridade arquitetônica representa questões estruturais do espaço urbano do Rio de Janeiro.


Margarida Cosentino lembra do lugar pelo cheiro. “Vinha de longe”. Eduardo Cavalcanti aprova o emparedamento, especulando que aquele seria um perigoso “ponto de venda de drogas”. Constanza Junior acrescenta que funcionaria como um “motel 0800”. Já Wilson Guedes acha “preocupante que as pessoas não acreditem que possamos conviver com o uso de um banheiro público”. Anisia Quirino da Silva é uma das que acreditam. Acha que com boa higiene e fiscalização pode dar certo. Parece que não era o caso desse. De acordo com Marconi de Andrade, “era um horror de tão sujo”. Camila Sampaio discorda. Está horrorizada mesmo é com a falta que faz o falecido: “As calçadas e ruas estão pedindo socorro”.


Urinar ou defecar em vias públicas é uma infração punida por multa, desde 2015, quando o então (e atual) prefeito Eduardo Paes assinou a lei no  5930/2015. E se aliviar no asfalto custa caro! Reajustado em 2025, o valor da pena é de 805,07 reais. Fora o constrangimento, é claro. Infelizmente, faltam alternativas ao cidadão carioca. O histórico sanitário da Glória não é um caso isolado - todos os banheiros públicos da cidade estão fechados. A assessoria de comunicação da Secretaria da Fazenda justificou, por telefone, dizendo que os espaços eram “constantemente vandalizados”.  Talvez por isso, muitos recorram às calçadas.


Mas, pode-se perguntar, o que custa procurar o restaurante ou botequim mais próximo? E a resposta é: cinco reais (no pix, dinheiro ou débito). Ao menos no caso do Vila Rica, um dos estabelecimentos em torno do endereço do falecido sanitário. Isso, ou o consumo no local, porque a taxa se aplica aos não clientes, como bem avisado em uma folha de papel afixada à porta do salão. Em dias mais movimentados é comum ver um funcionário como leão de chácara para a entrada no banheiro.


O preço nem é tão alto para alguém que está passeando pela praça em um dia de lazer. Mas para quem trabalha na rua todos os dias, seria impagável. Rosa Serra, que vende - veja só - flores, fez amizade com outros comerciantes locais e recorre às suas instalações quando precisa usar o banheiro. O quiosque verde que abriga suas plantas não tem encanamento. Os jornaleiros, taxistas, motoristas de aplicativo, entregadores, ambulantes, vendedores do famoso “shopping chão”, e até agentes da segurança pública também ficam à mercê da gentileza dos vizinhos.


Essa boa vontade, no entanto, não se estende a todos que precisam. As pessoas em situação de rua - que totalizam mais de 7 mil no Rio de Janeiro, de acordo com o censo da população de rua de 2022 - raramente são bem-vindas em estabelecimentos comerciais. Sem casa para morar, nem banheiro para se aliviar, são empurradas à irregularidade. E o direito de ocupar o espaço urbano, podendo fazer suas necessidades com dignidade, fica restrito aos cidadãos-pagadores. Isso porque o Rio de Janeiro “não quer ver pobre na rua”.


Foi o que José Santos Oliveira ouviu de um funcionário da prefeitura. Ele é o pai da família citada na matéria do jornal O Globo de 1990. Na época, preferiu manter o anonimato, mas em julho de 1991, quando o jornal retomou o tema, assumiu a identidade com nome e sobrenome. A sua, a da esposa, Lenira, e dos cinco filhos - Luciano, Mary, Douglas, Natália e José. Na ocasião, o mais velho tinha apenas 6 anos. Eles transformaram os banheiros da Glória em uma espécie de lar. Moravam lá desde 1988, exceto durante um curto período em que viajaram para a Paraíba e tentaram recomeçar a vida no estado natal do pai. 


No fim, voltaram para o banheiro-casa. O espaço de seis metros quadrados já não tinha as pias nem vasos sanitários, mas foi equipado com um fogão de duas bocas, um varal e dois colchonetes. A família, ainda por cima, dividia o espaço com uma mulher e seus três filhos, que antes dormiam na calçada. Na época, foram visitados por um representante do município, que informou aos inquilinos do imóvel improvisado que seriam despejados, reiterando que a cidade não os queria ali. 


“A gente só sai daqui se nos derem uma casa.” Até o momento daquela entrevista, o pai cumprira a promessa de não arredar o pé de lá. Não se sabe ao certo o que aconteceu às famílias depois disso. O que se sabe é que, eventualmente, sua “casa” foi bloqueada com alvenaria. E este foi o fim que teve um ilustre partícipe da história de um dos mais antigos bairros da cidade.


Teve uma vida longa e eclética. Foi banheiro, lar e sabe-se lá mais o que - como disse um comentário na internet. Fez, inclusive, uma participação póstuma em OPERAÇÃO RESGATO 2, uma “comédia trash absurda” de Lucas Stuvok. Nela, já emparedado, encenou o papel de um portal secreto. Foi um sujeito comum que serviu fielmente às gerações da sua comunidade. É dono de uma trajetória ímpar, em grande parte não registrada. Partiu, deixando para trás cidadãos de bexiga e coração apertado.


 
 
 

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