Por Danilo Marques e Nicole Lira

Entregadores aguardam reunidos o sinal verde para a realização das entregas (Reprodução: Danilo Marques)
Cláudio nos avisou que chegaria atrasado. O pneu de sua bicicleta elétrica furou naquela tarde. Explicou, depois, que é rotineiro acontecer. Com quase 50 anos, trabalha dia e noite, de domingo a domingo, e tem duas formas de obter renda: uma hamburgueria, que ele chama recorrentemente de “fixo”, e o serviço prestado para o iFood. Formado em Tecnologia da Informação, foi demitido de seu emprego durante a pandemia e procurou o formato que, de 2017 a 2021, cresceu aproximadamente 980%. Começou fazendo uma jornada dupla, mesclando a demanda do Uber Eats e do iFood. Hoje, no entanto, depois do fim da operação da plataforma de delivery da Uber, só presta serviço para a segunda — como os outros 200.000 entregadores cadastrados na plataforma brasileira.
Reclama pouco de seu trabalho. Mora em uma república universitária na Urca onde paga 800 reais por mês: tem uma vida transportável e muda-se de acordo com as suas necessidades financeiras. Na lanchonete, em Botafogo, trabalha das 6 da tarde à meia-noite. Depois, da meia-noite às quatro da manhã, corre pelas ruas da zona sul do Rio de Janeiro, de casa em casa, em situações milimetricamente quantificadas por um aplicativo baixado em seu celular. Descansa. Depois do meio-dia, está de volta a rotina e emenda às entregas vespertinas ao “fixo”. São, aproximadamente, 8 horas diárias on-line distribuídas entre a madrugada e a tarde. Explica, porém, que, na mínima derrapada, seu nível e sua pontuação descem, como se estivesse num jogo.
Quem é o seu chefe? Quem lucra, no fim das contas, com as poucas horas dormidas e as quase 60 horas semanais em que um aplicativo em seu celular diz para onde ir? Cláudio, por fim, não sabe responder quais são as implicações da atual situação de seu trabalho, que, desde o ano em que decidiu ser mais um entre os que vestem a mochila térmica nas costas, tornou-se um campo de disputa. Uma disputa cheia de conclusões “controversas” que se arrasta e que já atravessa dois presidentes. Parte da campanha do governo eleito em 2022 era direcionada aos entregadores. Durante o período eleitoral, o então candidato reuniu-se com os que prestam serviços para aplicativos. Além disso, ainda sob comando de Bolsonaro, o executivo federal, por meio do Ministério do Trabalho e da Previdência, discutiu formas para regular e superar problemas recorrentes em relação ao serviço. A proposta, até então, era uma adaptação do MEI, feita, exclusivamente, para trabalhadores digitais: uma parte dos direitos, como previdência e seguros sociais, seriam pagas pelos prestadores de serviço. Já a outra, pelas empresas.
No entanto, o diálogo, que havia sido estabelecido ainda em 2021, foi truncado por alguns pontos de divergência: um deles, o valor pago pelas startups. Lula, dois anos depois, voltou a dialogar acerca do tópico, declarando, ainda em seu primeiro ano de mandato, que “entregador não pode carregar comida com estômago vazio”. Ainda em 2023, foi instituído um Grupo de Trabalho Tripartite, do qual fizeram parte as principais plataformas em operação no país, como Uber, 99 e iFood. Como resultado das discussões, o executivo enviou à Câmara dos Deputados um projeto de lei que prevê o pagamento de R$32 por hora para o “trabalhador autônomo por plataforma”, assim categorizado. O Uber e a 99, em nota, celebraram o acordo e consideraram a medida um passo importante para os novos formatos trabalhistas. O iFood não: concordaram, em nota enviada ao veículo Money Times, com a proposta de Luiz Marinho, ministro da pasta do atual governo — de R$17. No entanto, “depois disso, o governo priorizou a discussão com os motoristas, que encontrava menos divergência na bancada dos trabalhadores”.
Entre os entregadores, a opinião é quase unânime. No dia 25 de março, a Federação dos Motoristas por Aplicativos do Brasil organizou uma manifestação. Em frente à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, as escadas de acesso foram tomadas pela categoria, que entoava gritos como “se o governo taxar, os motocas vão parar”. O protesto foi endossado por deputados como Kim Kataguiri e Nikolas Ferreira. No X, antigo Twitter, Kataguiri disse que eles deixavam “claro para o Governo Lula: não aceitam ser taxados, não aceitam sindicatos e querem ver ladrão na cadeia!”.
No TRAB21, grupo de pesquisa que funciona na Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, Jackeline Gameleira pesquisa as novas formas e relações de trabalho, inauguradas na última década. Em 2017, rigorosamente. Para Gameleira, “a reforma trabalhista precarizou e flexibilizou as relações de trabalho”. Em um artigo publicado na Revista de Sociologia da USP, José Krein, professor da Unicamp, diz que a nova legislação possibilitaria, acima de tudo, um cardápio de opções para empregadores manejarem as forças de trabalho de acordo com suas necessidades.
O trabalho plataformizado cresceria estratosfericamente. Formato que pode ser adotado nos mais variados negócios, nos quais a gestão do trabalho é centralizada pela plataforma — e balizada pelos algoritmos, conclui Jackeline. “Se esse trabalho antes podia ter algum âmbito de liberdade para ser realizado, uma sequência de comandos faz com que esses trabalhadores tenham suas atividades totalmente controladas por essa tecnologia, mas de uma forma muito invisibilizada.”

Entregador não identificado posa para câmera durante intervalo de entregas (Reprodução: Danilo Marques)
Antes, Leonardo pesquisava indústria cultural e o impacto causado pelo surgimento dos streamings. No entanto, “a plataformização da produção dos bens culturais implica uma plataformização do trabalho no campo da cultura e em um uso intensivo de tecnologias financeiras individuais, a Fintech”, disse. De seu apartamento, De Marchi, que é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, conclui que as plataformas digitais, como o iFood, colocam-se, dubiamente, como “intermediadoras de serviço” e esquivam-se do papel de “empregadoras”. Apesar disso, imputam ao prestador de serviço “individualizado” uma série de demandas, o que põe em xeque “a ideia de que elas [as empresas] aparecem apenas como intermediários e não como contratantes”.
Não são transparentes, entretanto, a forma como as startups operam. Se, por um lado, é sabido que as leis trabalhistas de 2017 afrouxaram e, de certa forma, criaram brechas para o pleno funcionamento das novas formas e relações de trabalho, de outro, é difícil saber quais são seus limites e bordas. Para De Marchi, a sua possibilidade de existência reside, precisamente, no fato de que as plataformas resumem sua função a controle de qualidade dos classificados “parceiros”, “essas milhares de pequenas empresas”. A forma como as plataformas funcionam aproveita-se desse batalhão de “empreendedores de si” — a expressão é geralmente usada para designar a redefinição de fatores trabalhistas em “governos ultra-liberais”, como explicou. “A advocacia dessas empresas é onde elas mais gastam dinheiro, porque isso permite que elas fujam de uma série de regulações e de impostos”, conclui.
Apesar de caminhar em direção à regulamentação, do ponto de vista de Jackeline, a discussão atual não é suficiente para reduzir os impactos causados nos moldes do trabalho brasileiro — e na sua consolidação de direitos. “Há uma fuga do direito do trabalho”, diz. Ao invés de ampliar e estender direitos, há uma redução do que já foi garantido, conclui a advogada e pesquisadora. Lembra, em última instância, que a Constituição equipara as condições mínimas de trabalho a quaisquer categorias. “Como conseguiram isso? Através de muita organização coletiva”.
No South Summit 2023, uma espécie de encontro de empresas de tecnologia, o iFood divulgou que trabalhadores que dedicam-se de 180 a 220 horas mensais — ou de 45 a 55 horas semanais — têm rendimentos médios de R$2.776. “Ou seja, o dobro do salário mínimo hoje”, disse Luana Ozemela, vice-presidente de educação, inclusão e sustentabilidade da plataforma. No entanto, vale registrar que há muito além dos pouco mais de R$1.400 mensais dos empregados em regime CLT. Empresas, para além do salário, pagam encargos e tributos, como as férias remuneradas, o décimo terceiro, o FGTS, o INSS e o vale-transporte, quando a contratação é em regime presencial.
Em pesquisa publicada por Ludmila Abílio, realizada através da Universidade de Campinas, foi constatado que, num universo de 200 entregadores respondentes, aproximadamente 44% trabalham mais do que 60 horas por semana, ao passo que 21% afirmou estar na casa das 80 horas. O mesmo relatório diz que os ganhos por hora, em média, resumem-se a R$12,10. Procurado, o iFood alega um ganho de R$23 e diz que “o trabalho da Unicamp observa um recorte deste universo a partir da PNAD-C, que têm caráter experimental, segundo o IBGE”. Em suma, trata-se de uma pesquisa por amostragem.

Sentado em uma bike Itaú, entregador não identificado anseia pelo próximo chamado em seu celular (Reprodução: Danilo Marques)
“Um celular, uma mochila e uma bicicleta” é o necessário para prestar serviço ao iFood, diz Lucas Nunes, entregador há pouco mais de um ano. Aos 31, trabalha dia e noite, em uma carga horária de cerca de 11 horas. Ele está incluso na categoria dos que se dedicam integralmente às entregas: de acordo com estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 22% dos entregadores em operação no aplicativo exerciam uma ocupação anterior e a deixaram, com o fim de dedicar-se à plataforma. Foi o que fez em 2023.
Lucas, que trabalhava de carteira assinada e recebia um salário fixo de R$1.300, decidiu experimentar o trabalho mediado por seu celular — “sem mochila, sem conhecimento e sem experiência”. Começa equipado, somente, com uma bicicleta e um celular. Ele reafirma a facilidade em iniciar. Ao circular em seu bairro, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, o entregador tem rendimentos de R$100 em um primeiro dia, quantia que é 2,4 vezes superior em comparação ao valor diário de R$41,93, ganho no seu antigo emprego. Decidiu solicitar a rescisão e enxergou lucro em tornar o iFood sua única fonte de obtenção de renda. Em uma semana, obteve — e costuma obter — um faturamento líquido relativo a R$1.200.
No iFood, Lucas está cadastrado em uma modalidade chamada ‘Operador Logístico’, na qual empresas específicas de cada região intermediam as atividades de entrega dos pedidos feitos pelos consumidores finais. A categoria, conhecida como ‘OL’, é administrada por empresas que se responsabilizam por definir a dinâmica de trabalho dos entregadores e repassar os valores recebidos por cada entrega, incluindo as gorjetas. A ‘OL’ contrasta com outra modalidade disponível na plataforma chamada ‘Nuvem’, na qual o iFood afirma promover um formato de trabalho independente para os entregadores. Em teoria, essa categoria possibilita autonomia e flexibilidade em decisões que tangem horários e localizações. Segundo Lucas, o formato ‘OL’ oferece entregas em maior quantidade em comparação à modalidade ‘Nuvem’. E há, também, um número maior de ‘promoções’, como são chamadas as entregas em que o “parceiro” recebe um valor maior que o normal por um trajeto.
“Eles falam que a gente é autônomo, mas nós somos obrigados a aceitar quase tudo”, comenta o entregador ao ser questionado sobre o conceito de gamificação. Ele explica que, por vezes, a plataforma apresenta rotas inviáveis, como uma que traça de Jacarepaguá à Barra da Tijuca, sob as duas rodas de uma bicicleta, um trajeto de cerca de 10 quilômetros de distância. Entretanto, a modalidade permite recusar entregas apenas quatro vezes. Após sucessivas recusas, o aplicativo bloqueia o uso para o entregador, e, então, poderá ser banido. A suspensão poderá variar de 15 minutos a 48 horas. As corridas de longa distância são recompensadas com ‘promoções’ que podem ultrapassar o dobro do valor mínimo de R$6,50 pago por entregas.
De acordo com De Marchi, é comum que empresas como o iFood funcionem como videogames — em que o trabalhador é imposto a cumprir uma série de metas. O que torna o “colaborador” mais chamativo, aos olhos do algoritmo. Para o pesquisador, a pressão psicológica resultante desse modo de operação conduz à aceleração desregulada de uma “auto-exploração”, que acaba deteriorando as condições de saúde dessas pessoas, especialmente, as que estão em situação de vulnerabilidade social.
Em consonância com o perfil construído pelo CEBRAP, que identificou os entregadores, de maneira geral, como homens, que se declaram pretos e pardos e estão encaixados na classe média baixa, há a insegurança ao recusar ofertas e rotas — que pareçam perigosas e que ofereçam riscos. “Então, trabalhadores mais pobres, efetivamente, têm toda uma dificuldade de dizer ‘não, hoje eu não vou entregar o café da manhã de alguém’, na verdade, precisam fazer isso em larguíssima escala e isso, evidentemente, conta muito com a exposição dessas pessoas, o nível de segurança que elas tem e o nível de assistência à segurança.”
Para Lucas, a situação tornou-se insustentável quando ouviu, do saguão de um edifício, “você tem que subir, seu negrinho”. Foram as palavras ditas ao entregador, que havia se recusado a subir as escadas de um condomínio por razões logísticas. Ele conta que pediu, no interfone, que a cliente se encaminhasse à portaria. Isso porque o bloco em que o apartamento se localizava era distante e as escadas de incêndio poderiam acabar com o sinal telefônico, o que resultaria em um status off-line no aplicativo.
Em 2024, o iFood registrou 13.576 denúncias, que costumam estar entre ameaças e agressões físicas. Em 16% dos casos, os problemas ocorreram devido a exigências de usuários, que costumam solicitar a subida de entregadores aos apartamentos. “Os clientes acham que a gente se torna empregado, só por ele estar pagando uma taxa de entrega”, diz Lucas.
Em nota, o iFood ressaltou que garante acesso à justiça e à assistência psicológica em casos de ofensas, agressões, manifestações de preconceito ou assédio a todos os entregadores e entregadoras através da Central de Apoio Psicológico e Jurídico, em parceria com a Black Sisters in Law. No entanto, Nunes relata que, em sua tentativa de entrar em contato com o suporte da plataforma, não obteve sucesso. Ele explica que, diante da demora e da dificuldade para um atendimento, optou por desistir da denúncia. Por fim, o entregador voltou para casa.
“Eu me ligo mais em fazer capital”, conclui Cláudio sobre a sua quase inércia em relação aos trâmites sócio-políticos que têm ocorrido na esfera federal. “É briga de cachorro grande”, pensa. “E o governo, a gente sabe, quer mais é morder”.
Em um ponto de encontro na zona sul do Rio de Janeiro, bikeboys e motoboys reúnem-se e fazem pequenos intervalos entre uma entrega e outra. Fumam um ou dois cigarros, assistem a vídeos verticais de quase 30 segundos e, normalmente, ficam calados. “Pô, eu comecei agora. Nem tenho mochila, tá vendo?”, disse um, que não falou seu nome, apontando para uma bicicleta alugada jogada ao seu lado, “não tenho muito o que dizer”. Já Fernando, em cima de sua moto, não disse muito. Com pressa, perguntando aos outros como chegar ao destino da próxima entrega, disse seu nome, que trabalha prestando serviço para o iFood e que não tinha nada a reclamar. “Acho o trabalho maravilhoso”.
Gameleira, por fim, conclui que o grande impacto do surgimento e aprofundamento dessa nova lógica trabalhista está nas possibilidades de negociação coletiva; e isso se dá, principalmente, porque “essas plataformas digitais controlam-os de uma forma invisibilizada”. Principalmente, ao pleitear direitos.

Motoboys reunidos em um ponto de Botafogo, aproveitam o intervalo entre uma entrega e outra para conversar e ter distrações (Reprodução: Danilo Marques)
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