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Como é ser mulher e gari?

Maria Rita Nader

Atualizado: 23 de mar.

Elas lutam pela sua dignidade em um ambiente majoritariamente masculino e preconceituoso 

Mulheres gris no período de trabalho (Reprodução: João Carlos Teixeira/Agência Senado)
Mulheres gris no período de trabalho (Reprodução: João Carlos Teixeira/Agência Senado)

Seis dias por semana faça chuva ou sol extremo, seja feriado ou não. Essa é a escala de trabalho das mulheres garis. A Instituição responsável pela limpeza do município do Rio de Janeiro (Comlurb) é considerada a maior organização de limpeza pública na América latina. Em 2023, ela era composta por 13.731 garis, sendo 37,7% desse grupo, mulheres. Apesar do uniforme laranja e chamativo, por que elas ainda continuam invisíveis para a sociedade? Para a gari Luciene, a invisibilidade vem de dentro da companhia: “A empresa tem essa coisa da mulher ser um sexo frágil. E ser gari mulher no Rio de Janeiro é um pouco desafiador por esse estigma”. Além disso, as condições de trabalho são as piores possíveis. 


A realidade enfrentada pela maioria das trabalhadoras é o difícil acesso ao banheiro e à água no horário de trabalho. Para Cíntia Brasil, ex-gari e, hoje, agente de limpeza e serviços urbanos, trabalhar no período menstrual era um dos maiores desafios devido à falta de acesso aos sanitários. Além disso, segundo uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, o país tem mais de 11 milhões de mães solo. E não existe uma gestão que ajude as mulheres garis que precisam cuidar dos seus filhos enquanto estão nas ruas. A fim de buscar melhorias para os garis, um exemplo de luta é o projeto Círculo Laranja


Sede do Círculo Laranja no Cachambi (Reprodução: Maria Rita Nader)
Sede do Círculo Laranja no Cachambi (Reprodução: Maria Rita Nader)

Ele nasceu em 2015 a partir da greve dos garis, em 2014, na reivindicação de melhorias junto ao poder público. Um dos pilares do Círculo Laranja, na esfera ambiental, é mudar o olhar sobre esses trabalhadores. Hoje, o projeto se une também com todas as áreas do conhecimento para além das questões trabalhistas, como  pré-vestibular social,  aulas de teatro e diversos cursos. “Gari não era uma profissão nem no Ministério do Trabalho, então, a gente precisava lutar pela requalificação desse trabalhador como agente de saúde ambiental. Mas, nós entendemos que precisávamos mudar a estrutura da organização com novos fatores, a sociedade civil”, explica a presidente Luiette Ornellas. Entender a realidade dessas pessoas é essencial para buscar reivindicações. 


As greves dos garis por melhores condições de trabalho não são recentes. Em 2014 foram 8 dias de mobilização. Em 2020, a Comlurb suspendeu um gari por lutar contra condições precárias de trabalho. A última greve, em 2022, teve grande apoio das mulheres garis nas manifestações. De acordo com a Luiette, elas foram as principais oradoras da greve. Mas por que essas mobilizações acontecem com tanta frequência? Na categoria em geral, o aumento ao longo desses anos foi de R$806,00 para dois salários mínimos. Mas, questões como benefícios específicos para as mulheres, como banheiros e uma política de creche, não foram conquistados. Nas ruas, sobre a sua rotina de trabalho e o que precisa melhorar, a maioria das garis afirma: “Não nos permitem dar entrevistas sem a supervisão da gerência”, disse a gari Carla, do Engenhão. Glória, gari do Flamengo, informou que não podia passar o seu contato para uma futura entrevista. Por uma questão de proteção, os sobrenomes foram omitidos. 


A naturalização dessa invisibilidade é algo que se tornou inerente à atividade. Essa mesma postura ocorre com as situações de violência, como xingamentos de cunho sexual por parte de homens nas ruas, direcionadas às mulheres. Camila de Almeida, escritora do livro Mulheres garis: relatos de invisibilidade pública e violência simbólica, passou um mês vestida de gari nas ruas da sua cidade para entender a realidade vivida em prol da sua pesquisa de doutorado. Uma das trabalhadoras relatou à Camila o desafio de entrar em uma loja dos bairros de classe mais alta que ela trabalhava porque se ela tivesse de uniforme ela era discriminada. A pesquisadora ressalta ainda que não foi reconhecida nem por familiares e nem por alunos enquanto estava uniformizada. 


Ao falar de diferença de gênero, é impossível não falar de raça. Segundo a jornalista Victória Murta Marinho, na sua pesquisa Interseccionalidade, invisibilidade pública e as mulheres garis do Rio de Janeiro, dos 13.731 garis, 61% se consideram pretos ou pardos e 15% não responderam. A partir disso, as mulheres negras ainda sofrem com um segundo indicador de desigualdade: a cor. Nas ruas, situações como não olhar em seus olhos se tornam mais comuns. A professora destaca que é como se elas estivessem integradas ao mobiliário urbano, porque elas estão fazendo esse tipo de trabalho que é considerado subalterno, por ser exercido principalmente por mulheres negras de classe social mais baixa e de baixa escolaridade. Para ela, as garis representam a base da pirâmide de estratificação social que representa tudo aquilo que a sociedade discrimina. Tais situações não são problematizadas quando você não vive isso na prática.


Não é necessário sair de dentro da empresa para encontrar pessoas que não enxergam as necessidades e problemas enfrentados pelas garis. Jaqueline Alexandre, supervisora de uma das unidades da Comlurb, relata não achar que essas profissionais são invisibilizadas como Cintia e Luciene acreditam serem já que algumas pessoas se sentem invisíveis independente da função que exercem em uma empresa. Ela destaca que as mulheres da Comlurb são bem esclarecidas e sabem se posicionar muito bem. Falas como essas demonstram a hierarquia presente dentro da empresa. Luiette a compara com uma reprodução do regime escravocrata, em que uns têm boas estruturas de trabalho e outros não. 


Ser gari atravessa muitos espaços: o ambiental, político e social. E, muitas vezes, isso não é visto pela maior parte da sociedade, muito menos pela própria empresa. Apesar das dificuldades e da constante luta por uma condição digna de trabalho, as mulheres garis não deixam de se manterem bem vistas e maquiadas. “Sempre me preocupei em deixar claro que o fato de trabalhar com lixo não me diminui como pessoa e muito menos minha feminilidade. Mas o fato é que o ingresso de mulheres no ramo de limpeza urbana embelezou a cidade”, finaliza Cíntia. 





 
 
 

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